sábado, 1 de maio de 2010

Conferência Década dos Zeros: resumo e introdução sem cortes

Um muito obrigado ao Bruno de Almeida, João Lopes, Fernando Cabral Martins e Luís Miguel Oliveira por terem dispensado quase 2 horas do seu tempo para nos oferecer uma interessantíssima conferência, onde se falou da década que passou e, sobretudo, porque é para aí que temos de estar sempre virados, das que aí vêm. Falou-se das novas formas de fazer e ver cinema, do "fim do cinema", do 3D, da realidade que é ficção e da ficção que é realidade (e das ficções e/ou realidades que existem nas nossas cabeças), "Avatar" foi o filme mais discutido, Godard foi citado por todos, Hitchcock não foi esquecido da equação e, claro está, falou-se de Tarantino.

Antes de ter colocado a primeira questão aos nossos convidados, disse algumas palavras (mais ou menos improvisadas) que fazem o balanço deste ciclo - o balanço do nosso balanço da década. Torno-as públicas aqui como teaser para o resto da conferência, que tentaremos publicar em vídeo neste espaço.


Se me permitem, gostava de começar esta conferência fazendo um balanço deste balanço da década dos zeros que acabámos de fazer.

Como surgiu esta ideia? Penso que este desafio nasceu da exploração daquilo que considero ser uma contradição estrutural no meio do cinema e, dentro dele, no meio académico, especificamente, no nosso mestrado de cinema e televisão.

Em realização cinematográfica, cadeira do mestrado de cinema e televisão, o nosso Professor João Mário Grilo falou, logo na primeira aula, daquilo que era para si o “fim do cinema”. Este discurso foi ganhando várias formas ao longo do semestre: como situar esse fim? Fim no sentido talvez que Fukuyama atribuiu ao seu fim da história: como se o cinema atingisse um ponto de esgotamento. Como aquela personagem de “Lady in the Water”: “já não resta qualquer originalidade no mundo”. Falo do crítico que Shyamalan executa sem piedade em jeito de vingança.

O cinema morreu, o que não quer dizer que se deixaram de fazer bons filmes mas que nem estes vêm acrescentar alguma coisa, contudo, como pode saber isso ou o contrário quem admite não ir ao cinema há anos, ter deixado de acompanhar as últimas tendências da sétima arte? Jacques Rivette*, numa entrevista publicada no site Senses of Cinema, criticava os seus colegas franceses por falarem mal do cinema de hoje sem o mínimo conhecimento de causa. Ao mesmo tempo, elogiava coisas tão díspares como Wong Kar-Wai e Paul Verhoeven, nomeadamente, o seu “Showgirls”. Gostava de saber o que pensa um realizador internacional como Bruno de Almeida sobre a relação dos cineastas com o cinema dos outros.

Muitos realizadores gostam de dizer isto: o cinema morreu e eu já não vou ao cinema. Arriscando-me a confundir consequência com causa, diria que esta proposição tende a ser paradoxal ou, no mínimo, a bloquear o pensamento. Se não vão ao cinema, como é que sabem com tanta certeza que o cinema está morto?

Olhemos para a programação da cadeira de realização: “Angel Face”, “L’atalante”, “The River”… Alguns filmes que, no seu tempo, foram ignorados, maltratados ou mesmo ridicularizados pela maioria. A distância entre lixo desprezível e obra-prima de estudo obrigatório pode ser mínima.

Tenho noção que a distância em relação à década que passou ainda não é suficiente para uma análise clara, mas cabe à faculdade, penso eu, iniciá-la – e João Lopes muito tem escrito sobre a falta de espaços onde se reflicta o cinema de ontem, hoje e amanhã para lá do discurso simplificador e estupidificante, mas epidémico do “gostei/não gostei”. Por isso, eu e mais 14 colegas, do cinema e não só, organizámos este ciclo.

Reunimos as listas publicadas nas revistas, blogues e sites da especialidade – The New Yorker, Cahiers du Cinéma, Sight and Sound, sound and vision** – e procurámos, respeitando a liberdade de escolha de cada um, fazer uma lista “original” ou que fugisse à norma deste tipo de exercícios – que tantas vezes apenas servem para consagrar filmes demasiado vistos, demasiado analisados e demasiado amados.

O balanço que Luís Miguel Oliveira fez da década, nas páginas do Público, foi inspirador: percebi que nesta década nomes como Rohmer, Mann e Cameron se podiam encontrar no espaço de poucas linhas. O nosso objectivo era espelhar assim o lado indefinível, amalgamante desta década. De Carpenter a Sissako, de César Monteiro a William Friedkin, de Jia Zhang-ke a Paul Auster… Estava assim formada uma lista B sem lista A.

E agora que já vimos e revimos todos os filmes, constato que as relações mais impensáveis são possíveis; que há qualquer coisa que liga a tragédia de “Noite Escura” à tragédia de “Bug”; que tanto “Ghosts of Mars” como “Lady in the Water” são filmes políticos – profecias não ouvidas da América George “axis of evil” Bush e Obama - ou fantasias do concreto, do palpável, um cinema de carne e osso em vias de extinção; lemos que “o pior cego é aquele que não quer ouvir” e, para chegar a esta conclusão da autoria de Francesco Giarrusso, basta ver e ouvir “Branca de Neve” – será isto um filme? Perguntou uma das espectadoras que resistiu à sessão. Vitoriosas foram as sessões onde houve discussão verbalizada ou não, luta entre o espectador e o filme. Não é fácil ver 2h30 de China em “Plataforma” e depois um filme na escuridão sobre uma branca de neve que diz sim a quem a quer matar – César Monteiro disse/diz não, mas ninguém o ouviu, ou melhor, ninguém o quis ouvir e, por isso, hoje em tempos de crise ele nos faz ainda mais falta.

Foi interessante ver como os fantasmas de Auster se podem cruzar com os fantasmas de Garrel num auditório em Lisboa com meia-dúzia de pessoas a assistir. Também o último filme de Carpenter está assombrado: pelos fantasmas de Marte e pelo fantasma da película, do scope, do western, do analógico versus o digital.

Por outro lado, como é possível que um continente inteiro caiba num tribunal e um tribunal nas traseiras de uma pequena vivenda no Mali? Talvez da mesma forma natural que o Portugal real pode caber numa casa de alterne a anos-luz do Portugal burguês de algum cinema e de quase toda a televisão nacionais – este foi o gesto de Canijo a rimar, à distância, com o de Sissako. E o que é que este realizador da Mauritânia tem a ver com Alexie, um homem das letras que nos fala do índio moderno no seu “The Business of Fancydancing”? Primeiro, nenhum deles se estreou comercialmente em Portugal e, segundo, em ambos fala-se de racismo e globalização.

Alexie e Auster, dois homens sobretudo das letras a fazer cinema. Qual a relação entre a palavra e o cinema nos nossos dias privados já de Rohmer mas com Tarantino?, podíamos perguntar isso a Fernando Cabral Martins.

Também vimos que “Mary” rima literalmente com “Gerry”, provavelmente, o mais belo filme de Gus Van Sant – mas, na altura, poucos olharam para ele. Em “Mary”, o discurso virou-se para a religião e vimos que, apesar do título, o protagonista é homem, aliás, o protagonista divide-se entre dois homens: o realizador e o entrevistador de televisão, as duas faces do problemático debate religioso em Ferrara. E o crucifixo é filmado como é filmado o telefone, a televisão ou o laptopmass media.

Pusemos a família Coppola no mesmo dia para ver que o pai continua a investir numa complexa “segunda juventude” e a filha segue, de algum modo, as pisadas da primeira juventude do pai.

Ao mesmo tempo, Versailles rimou estranhamente com Marte: em Carpenter, falámos de um western situado num futuro antigo – Hawks no século XXI ou o século XXI em Hawks? -; em Sofia Coppola, de um passado presente que mistura o século XVIII com os anos 80 quase com a mesma facilidade com que Tarantino, poucos anos depois, reescreveu os eventos da II Guerra Mundial. Tarantino foi citado três vezes nas nossas folhas, porque fez isto e porque, seguindo as pisadas de Carpenter (logo em “Death Proof”), pôs as mulheres no comando. É o grande presente ausente do ciclo.

Depois disto tudo, Douglas Gordon e Philippe Parreno vieram dizer-nos que o rosto, as expressões, as pernas e o andar de Zidane são o retrato do século; que, pela televisão, ele (quase reduzido a um pixel) parece acompanhado (por outros pixéis), mas, pelas suas múltiplas câmaras, o seu estado é de profunda solidão. Assim foi este ciclo.

To be continued...


*- Na conferência disse Resnais em vez de Rivette. Um erro que corrijo agora (apesar de saber que o primeiro continua a ser um cinéfilo atento, e um apreciador de Wong Kar-Wai e... séries de TV como "Lost").
** - Ver mais aqui e aqui.

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